Ontem roubei um carro. Sabe como é; domingo, nada para fazer. Saí de casa para pegar o ônibus, é claro. Estava meio sem rumo, triste dentro de casa. Vazia. Até meu cachorro foi dar uma volta. Indo para o ponto de ônibus, logo o vi: vermelho, todo lustrado, com as portas abertas e a chave...no contato! Não é um carro que desperte a cobiça de qualquer um que o visse. Um popular. Mas tão redondo, tão acabadinho, tão me chamando. Nem pensei duas vezes. Nem se era certo ou errado. Nem dei aquela conferida típica de ladrão, olhando para todos os lados para ter a certeza de que ninguém estava vendo. Cansa andar de ônibus e na hora fez o maior sentido pegá-lo e guiá-lo livremente como fiz. Nem sei a que altura o dono voltou para a calçada e viu que seu possante não estava lá. Sabem que domingo é dia de lavar o carro, com som ligado no último volume, aqui por essas bandas. Ele deve ter ido atender o telefone. Como não tenho com que falar aos domingos, aproveitei a deixa. É bem estranho dirigir carro que não é seu. Não que eu já tenha tido algum assim só meu. Me senti tomando o lugar de outra pessoa...Não sei explicar ao certo, mas é como se estivesse olhando as ruas, as pessoas com olhos que não são meus, quando na verdade só estava guiando algo que não era meu. Não tenho muita sabedoria, mas fazemos isso com a vida às vezes. Segui em direção ao Centro. Que beleza não estar no corredor de ônibus. Nem aproveitei muito o bem estar de-não-andar de coletivo. Parecia que estava estampado em minha testa: “Roubei esse carro”. A ambulância passou ao meu lado e tive a impressão da sirene querer saltar para me prender. Bobagem, eu sei que era. Sirene não prende e nem era da polícia. Me sentia feito criança que faz coisa errada e apesar de ninguém ter visto, parece que o mundo inteiro sabe só porque é errado. Mesmo assim, segui firme com meu olhar fingido de que sabia bem todos os segredos daquele veículo. Mal sabia o combustível que o fazia andar. Quando saí de casa, pensei mil coisas que poderia fazer num domingo de sol como o de ontem. A primeira coisa que fiz então, foi seguir em direção à casa de um amigo, que há muito não via. Aproveitei para levar uns cds que ele tinha me emprestado e que acabei nem ouvindo. Mas, como gente solteira não para em casa, tive que deixar os cds com o porteiro. Nem falo o medo que eu estava de estacionar o carro ali naquela rua. O lugar que ele mora é bonito de um lado e um lixo do outro. Fiquei com receio de alguém...é, que alguém roubasse o caro. Afinal de contas, não pretendia ficar com ele para mim. Meu amigo não estava em casa, uma pena, deveria ter ligado antes, pensei. Mas não estava num dia de negociações. Queria estar nos lugares e ponto e quem estivesse comigo, muito bem. Incrível como o carro andava bem com o combustível que tinha. Segui para a divisa com a Zona Sul. Ao ver um amontoado de gente e uns caminhões dos bombeiros, pensei ter havido algum acidente mais à frente. Mas me aproximando, percebi que era uma festa. Há quanto tempo não passava por aquele lugar! Não gosto muito de monumentos, prédios históricos, mas ali estava um lugar bonito. Grande, simétrico...lotado de gente! Comemoração do dia nacional do bombeiro. 2 de julho. Resolvi entrar. Logo no início da rua achei uma vaga. Mas não pense que o deslumbre de entrar assim, transitando livre e failmente pela cidade me fazia esquecer o pavor que estava de que alguém me descobrisse. Estacionou ao meu lado o carro de uma família-feliz: filho-cachorro-patins. E eu só. Engoli o choro. Havia muito o que ver por ali com meus próprios olhos. Não conseguia me concentrar nos caminhões antigos. O vermelho deles me fazia lembrar do carro, lá fora, desamparado. E se alguém desconfiasse? Não, não. Como desconfiariam? Continuei subindo aquela rua sem fim. Milhares de crianças desciam no contrário de mim. Era impossível não sentir um certo deslocamento ali. Não conhecia ninguém. Ninguém me percebia. Não dariam falta se acaso me jogasse ali no rio que passava ao lado, ou se sumisse no meio daquelas árvores. Algum guarda faria a ronda para perceber os despercebidos? Na cabeceira da rua, no final dela, não sei como descrever aquela parte em que cheguei, senti que ninguém se importava mesmo. Quem se importaria com um ser humano invejoso, como era eu ali vendo aquela cena? Patins, skates, bicicletas, manobras, corpos em movimento. Pego em minha cintura e me percebo. Sim, me enxergo. Já não sou a mesma pessoa. Muito menos por fora. Cheguei a um jardim que parecia um labirinto. Não entrei. Não tinha o que achar ali dentro e tenho pavor daquele mosquitinhos irritantes que voavam sobre ele. Dei a volta e vi que a entrada no monumento era de graça. Passei a catraca. Ia fechar dali quinze minutos. Para que entrar então? Entrei e não achei nada de mais. Nem de menos. Fiquei procurando uma sala com chapéus que me lembro ter entrado quando criança. Não achei. "Cada cabeça tem seu chapéu". Saí de lá antes que o tumulto começasse, pois estava tudo bem cheio. E eu ainda não tinha conseguido preencher o que faltava. Rodeei o jardim pelo lado oposto ao que tinha vindo e sentei num parapeito. Me deixei aquecer pelo sol, antes que o calor se fosse. Nos encaramos de frente como há muito não fazíamos. Do meu lado esquerdo há uns vinte metros de distância, um casal me encarava. Acho que atrapalhei alguma coisa. Desci do parapeito e virei as escadas. Fiz questão de não passar por onde estavam todas aquelas pessoas se exercitando felizes. Preferi o lado em que menino corria com o cachorro desengonçado. Que pena que os dois vão crescer. Não aguentava mais. Saí correndo, não me importando com o que estava escrito em minha testa. Os bombeiros já recolhiam as parafernálias das comemorações e eu só queria chegar até meu...quer dizer, até o carro. Não achava. Não marquei o lugar onde estacionei. Não lembrava que carro estava do lado. Não sirvo para ter um carro, ainda mais os que não são meus. Nem pensar em pedir ajuda. “Qual a placa do teu carro?”. Não saberia dizer nem o modelo, no momento do desespero. Meia hora de angústia e lá estava ele. Abria porta, sentei no banco e me certifiquei se era ele mesmo, afinal tínhamos pouca afinidade ainda. Dei partida e segui com alivio sentido Centro, novamente. Resolvi que iria ver um filme. Hesitei. Não tem nada mais deprimente do que ir ao cinema só. (Continua...)
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