terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O deus das pequenas coisas

Queria ter agradecido à alguém pela semana difícil.. "Obrigada à todos os envolvidos". Me imaginei ganhando o Oscar quando a semana acabou. Mas somente hoje me dei conta de que não era à alguém. Era à algo. Que sim, se tornou alguém.
Quando comprei o livro, foi por causa daquelas três páginas que li, enquanto o ônibus balançava: "Pode ler, vou ficar em pé".Tive aquela sensação, pouco modesta de que eu poderia ter escrito aquele livro. Sim, eu poderia. mas não fui eu e me deu enjoo. Seu braço quebrado, a gente chegando no hospital. Nunca mais eu leria o livro.
Não leria, se eu não romantizasse coincidências. Jamais atravessaria a cidade para fazer um exame. Atravessei. Jamais falaria com uma pessoa de olheiras tão profundas. Falei. E você estava lendo um livro de uma indiana. E eu um sobre a Índia. Como não romantizar?
Deve haver um jeito. Vou aprender.
O ano virou e fui lá: "Moço, você tem esse livro?".
"Quando terminei de ler, fiz assim...". E a imagem do seu corpo fazendo a cena me acompanha a cada página. Nada, Nenhuma saudade, fique tranquilo. Não coloque isso na história que você irá contar para as moças. Revivo seu gesto porque ele faz sentido a cada parágrafo, a cada frase que mando para amigos. "...assim" e volto páginas para ler de novo... o sonho de Ammu. O bafo de Ayemenem... que poderia ser o bafo de Macondo. Ontem abri "Cem anos de solidão", como quem abre um oráculo, só pra sentir "o bafo". Uma aranha bem pequena saiu de lá. Fui até a janela pra jogá-la no jardim, mas ela pulou e ficou pendurada na teia que fez pra fugir da página em que Úrsula se assustava coma previsão de que seu marido morreria.
A aranha pulou para a esquerda: "Não desvie, volte para o bafo de lá".

Já previa o que aconteceria comigo. Tanto que o larguei assim que comecei a leitura. Um dia, fingi que era mais uma visita despretensiosa à livraria e numa prateleira qualquer de alimentação... "Você e seu sangue". Tinha certeza de que aquele livro me salvaria.
Leitura banal, acabou em um dia. Tive que voltar às "pequenas coisas".  Sim, sempre volto para as coisas que sei que vão me devastar... Voltei ao fantástico da Índia-politeísta-comunista-burguesa-machista.
Só hoje, quando me vi sabotando o final da leitura (fico atrasando o fim da leitura, dando voltas para que não acabe, porque sei que ficarei solitária sem aquele sofrimento), só depois de reviver uma centena de vezes seu-gesto-de-voltar-ao-início-do-livro, foi que me dei conta de que era ele!
Era ele!
O livro que me afundou numa tristeza sem fim a semana-toda!

E foi ao ler o sonho de Ammu... foi ao ler Ammu em frente ao espelho. Foi ao deixar meu olhar cair no vazio, enquanto o ônibus passava em meio aos sons das panelas e buzinas que me dei conta.

Tinha uma formiga entrando na campainha de casa quando abri o portão. Resolvi agradecer à ela pela semana. Poderia agradecer à você, que foi quem me fez chegar até o livro.
Mas a formiga... não me disse que eu tinha uma visão medíocre de mim mesma,só porque eu não quis ficar com ela.

Obrigada formiga!

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