quarta-feira, 17 de junho de 2020

Dezessete de Junho

A volta do Sol. O Sol chega junto. Toda vez que chega tem Copa do Mundo ou mega manifestação. Tem jogo do Brasil ou decido subir uma montanha com meu corpo febril. Esse ano tem pandemia. Em quanto está a saturação? Coloco café na xícara e junto com o líquido desagua a lembrança do sonho inteiro. Esse ano a montanha rarefeita tem picos de oxigênio no subir das escadas com vista para o céu que acham lindo, mas é pintura da Petroquímica. Olá, público? Vocês estão aí! Desculpem, eu estava distraída. Sim, eu falava aqui desse lindo céu de outono. Química vindo de Santo André, sentido Mauá. Seja em menor ou maior capacidade, tem sempre alguma coisa queimando e não cheira bem. Faz o céu, perto da meia noite, ter um clarão, que está longe de ser a Aurora Boreal. Aurora Bimodal? Hora de ouro no terminal. Ouro de tolo que paga cinco reais no transporte. O tolo é valente, paga contente. O touro? O touro é castrado! Há tempos que só tem tamanho e com isso, sabemos que não somos tão fracos. Mas essa noite fui jogada com força dentro de um elevador, junto com um homem fraco e medroso. E um guerreiro chinês. Na verdade, se me recordo bem, foi o guerreiro chinês que nos colocou lá dentro. O homem medroso tinha certeza de que o guerreiro chinês iria matá-lo e eu sabia disso porque eu também sentia o cheiro da morte e não vinha de mim. O guerreiro chinês, percebendo o medo, sorriu levemente, seus olhos ficaram difusos e fizeram com que acelerasse o elevador. Tentei me manter estável, espalmando as mãos nas paredes, mas não consegui mais distinguir se estávamos subindo ou descendo. Quando o elevador parou e a porta se abriu, saímos direto em uma sala enorme, onde havia um banquete de carne crua. Peixes inteiros crus sendo devorados calmamente por um homem que dançava seminu, uma dança sinuosa. Sua cabeça era enfeitada por moedas prateadas e eu soube que ele mataria o homem medroso apenas pela forma que ele nos encarava. Da mesma forma que assim que entrei na sala, identifiquei que toda aquela carne era para mim. Imediatamente segui em direção a um divã, onde estava deitada uma mulher que se fartava do banquete e me fiz distraída frente a oferenda, já que minha lembrança ruim da última farra de carne crua, ainda revira em náuseas minhas entranhas. Nausíaco? Eu sabia que tinha que sair dali. Sabia que minha única função era acompanhar o homem medroso e saber que ele seria devorado. Mas também sabia que só conseguiria sair dali se conversasse com a mulher. Falamos sobre Escorpião. Talvez tenhamos falado algo sobre Sagitário e Virgem, mas o assunto era mesmo a água profunda. Como quem desvenda o que a Esfinge precisava ouvir para nos livrar da Peste, falei sobre os enigmas da morte e do oculto em mim e assim, pude ir embora. Havia uma presença forte, um holograma de um antigo amor. Sua presença era grande e concreta como ele sempre foi, mas nunca percebeu. Acordei em um campo a céu e o sol aberto, o vento e o frio seco. Confusa, pensei estar em Oeiras, mas o o quente-frio de lá é diferente, memória insistente. O que me acordou foi o ar de montanha que já foi mar e não de mar que já foi montanha. Era Bolívia? Eu senti que ao abrir os olhos, algo dava as mãos. Mas não era definitivo, porque todo voo em seu pouso. A sabiá pousa para alimentar os filhotes e o avião parar desovar vírus, terroristas e românticos distraídos. O voo que precedeu a pandemia sonhava com um pouso tranquilo, talvez alguns quilos de muamba e cocaína e eu sonhei com uma velha que me enforcava e apontava para o que parecia ser o forro do teto. Mas como sou imbecil, pode ser que ela estivesse apontando para o céu, para o alfabeto das estrelas, enquanto eu estava preocupada com as goteiras e um mês de infecção urinária. Quantas vezes os quarenta mil sentiram pontadas no baixo ventre? A Velha não me disse. Ela só mandou um menino para segurar a minha mão, que me pediu para que não tivesse medo ao entrar no auditório. Quando entrei, era tudo azul-de-São-Miguel-Arcanjo e havia corpos deitados, envoltos em plástico leitoso, azul e verde, igual aos da época da escola. Cheiro de mimeógrafo 'Por que nos mandaram aqui dentro?". Não foi minha pergunta, mas poderia ter sido se eu não tivesse avistado um rio lá dentro mesmo. Sentei na beira dele. Se houvesse rede, deitaria nela, mas pode ser que tenha servido para carregar algum corpo sem vida. Há alguma música que pode ser ouvida? Sim, toca uma música..."Dicen que por las noches, no mas se iba en puro llorar". Dicen... que tem que refogar o alho antes de cozinhar. E que é bom passar uma café depois. Não é todo os dia que se comemora a volta do Sol na secura. Às vezes é no dilúvio, no mar de gente contra o preço da condução. Por isso, não adianta plastificar os mortos com cores leitosas. O café dessa volta do Sol deve ser sem açúcar.

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