segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal


“Hoje eu acordei com sono...thurururu...e sem voltade de acordar...thurururu....o meu amor foi embora e só deixou pra mim...”
Barão Vermelho “Bilhetinho Azul”

Mãe - “Seu pai disse que quer ter uma conversa séria com você”
Filha - “O que é pai”
Pai - “Nada de mais. É só pra você parar de correr atrás...Ele vai acabar achando que você é resto...de feira...”
Filha - “...Você viu que o Kassab subiu na pesquisa, pai?”

A chuva não me convidava a sair da cama, o dia não me convidava a viver, o teto me pedia para fechar os olhos e acho que o cachorro da vizinha tem medo, tem medo, tem medo da chuva e não latiu. Ele late todos os dias das seis até às dez da manhã. Como não me enlouqueceu com seus latidos desesperados, lembrei serenamente do sonho que tive com Nossa Senhora de Lourdes. Há pelo menos sete anos deixei de frequentar a igreja e mesmo assim tenho repetidos sonhos com santos, Nossa Senhora em suas milhares de aparições e igrejas, muitas igrejas. Esta noite a dona Lourdes aparecia na testa de uma companheira de trabalho. Na testa.
Nela, a testa, ficaram todas as frases, tudo o que eu deveria ter escrito e não escrevi por falta de coragem. Não tive nem um pingo dela para encarar o vazio e mostrar (para quem?) o quanto estou perdida. Eu, que tenho essa visão distorcida de mim mesma. Sinto um enjôo dos últimos dias, um sono que não morre nas horas, um cansaço das vozes do outro lado da linha. A certeza de que não estou grávida, mesmo com todos os sintomas, me entristece. Não estou, porque não tenho meios. Não sustento minha vida que deveria caber no meu corpo. Na verdade não sei se sou pequena demais para conhecê-lo e explorá-lo por inteiro ou se minha grandeza esmagou meu corpo e por isso vagueio por aí como as almas que não ganharam o Paraíso. Antes que isso fique patético demais, chamarei o Wando, lhe darei uma calcinha em troca de mapear meu corpo inteiro.
Era aniversário do meu pai. Sábado. “Vamos então comprar o presente dele enquanto ele vai...” não sei onde. No caminho, atravessando a rua, comecei a ouvir os planos daquela menina...uma menina meu deus, o que é que ela está falando? Ela estava dizendo, que estão procurando apartamento, que é por ali mesmo e que de um jeito é melhor do que do outro e...Os sons foram sumindo e lá no vazio eu fiquei. Vendo os carros passar. Faziam o ar deslocar veloz, como numa afronta a eu estar paralisada. Mais devagar por favor, eu preciso entender, ainda não entendi tudo. “Eu teria me casado com você”. Sim, eu teria. Mas ela é uma menina, não deixe que faça isso, por favor.
Mas não saía nenhum por favor da garganta. Queria gritar, meu deus, eu gritaria ali mesmo, mas assim como gritaria, preferi o silêncio das últimas semanas, dos últimos meses “Você está muito estressada...e...”. O que mais mesmo? Atravessei a rua.
Já muito arrependida de ter ido até lá. Parada, esperando o cadastro. Brinquei com a menina. Ela, que naturalmente nunca foi muito simpática, me expulsou, a mim e meus gracejos. Fui embora. O lugar, as pessoas, a arrogância de quem iria se casar...nada me convidava a continuar ali. Enquanto atravessava o setor das roupas infantis, ela veio atrás com passos meio arrependidos, meio interrogativos. Afinal, quem eu era para me aborrecer com alguém tão cheia de razão. Uma menina.

Atravessar a rua de novo foi a afronta final. Não aguentei pegar a fila para me esconder e liberar meu corpo do que sobrava. As pessoas viravam borrões e eu estava ali mesmo em todas elas, desfigurada, sem forma. Sem. O calor derretia qualquer possibilidade de solidez. Possibilidade; palavra inapropriada para minhas poucas chances.
Esqueci de tudo. Quando cheguei e vi meu pai mais perdido que eu, procurando chaves, carteira, relógio...”Você já voltou?” Não havia possibilidade de lembrar. Eu que nunca fui embora de verdade, fiquei com a vontade de dizer adeus engasgada ali na frente dele. Dentro das lembranças impossíveis, lembrei que sempre disse que nunca me casaria. Se o cachorra da vizinha não latir demais amanhã, me encarrego de lembrar que dia foi que eu mudei de idéia.

8 comentários:

UtópicA disse...

Me ajuda a entender vc, amiga, e o que se passa nesse seu "EU" tão cheio de beleza e sentimentos.

Estou aqui sempre e aí sempre em mente.

amo vc.
bjs

Kaká Bullon disse...

Veja bem...

Pretendia deixar num comentário essa mesma frase que sua amiga usou: "Me ajuda a entender vc" rs. Além disso, cada dia parece que acordo com uma música grudada no pensamento que vou cantando ao longo de todo o dia. A de hoje: Panis At Circenses

Sonhando com Santas e eu vendo Maria Cheia de Graça e achando graça porque se parecia com você.

Muchas coincidencias hoy!!!!

Texto iluminadoooo!

Flora Ramos disse...

Eu adoro, em especial, suas últimas palavras..

Anônimo disse...

Visitei por sugestão da Kaká e amei...vc é fantástica e eu... a mãe da Maria Fernanda, a estrelinha do blog da Kaká, bjo

Anônimo disse...

...agora sim estou de volta definitivamente. antes de ler o post vi a imagem de Nossa Senhora e fiquei com muitas perguntas na cabeça. Esta semana tive um dejavú, ao lembrar de uma canção dos tempos da Igreja...me emocionei. São registros na memória, referências que podem sinalizar felicidade, dor, poder materno, indignação...
Sobre os outros comentários, eu acho que posso pretensiosamente dizer que entendo você, mas não consigo expressar isso em palavras. Te compreendo como ser, mesmo desconhecendo particularidades que só a cabe entender e elaborar. Mesmo eu sendo metido a amigo psicológo, gosto de ler o que escreve, te ouvir sem interpretações erroneas, sem leituras extras...pelos insights a gente se entende! beijos com saudades sempre
your Flá!

Naty Dezoti disse...

Sabe. Tem uma menina aqui por perto que também vai casar. "Assim que eu me formar". Diz ela.
Assim que ela se formar.
Isso parecia tão longe. Mas dá medo saber que está próximo.

E vamos logo tomar uma pra vc se encarregar de lembrar quando e se realmente mudou de idéia.

Bill Falcão disse...

Na testa? Da santa?
Bom, se a cachorra da vizinha não latir tanto, você conta mais, tá beleza?
E um bjoooooooo!!!!!!!

Flora Ramos disse...

Fui num casamento dia desses. Me senti tão bem. Provei da mesma festa, dos mesmo salgadinhos, doces e dancei da mesma música, que dançaram os dois. E acordei no outro dia, ainda livre. Adoro casamentos, mas não quero nunca uma festa dessa pra mim!