quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O rio Ganges e a filha do vento

Por saberem que era fruto dele, assim a chamavam: a filha do vento. Tinha nome, mas até hoje não descobriram como pronunciá-lo. Diziam que tinha sido batizada por algum índio, por isso o nome difícil. Estranho batismo cristão, como nome índio em terra de ninguém. Banalizavam. Por ser filha dele, não tinha parada. Era de se esperar que um nome impronunciável, fosse ridicularizado ao cair em ouvidos errados. Como tudo que não é compreensível, que não é comum, que não é... Nem audível. Outros dizem que ouviam sim, claro que ouviam, mas não era possível decifrar. Era um sussurro. Um susto.
Ela era alheia as fronteiras. Pulava corda com as outras crianças, mas não significava que estivesse com elas. As mãozinhas das crianças da terra, movimentavam a corda e ajudavam a despertar o vento para brincar com a menininha do ar. Dele vinha o afago que fazia o mundo dançar e com o carinho que só ela conhecia, podia ir de um extremo ao outro. Não sabia dos nomes, quem era dono de qual parte, não conhecia os protocolos, as convenções e muito menos das línguas. Alguns diziam que nada sabia. Os cachos não eram de menina índia. Mas o que ela sabia, dizem que era coisa deles, por isso suponho que sabia um pouco mais.
Quando fez dezessete anos, passou a andar pelos telhados. O lugar em que morava, já não era de terra batida, não tinha nenhum chão vermelho pra correr e fazer seu pai brincar com seus cabelos. O chão era cinza e mal acabado e a única forma de estar perto dele era sentindo o calor que protegia os que tinham medo. De cima.
E assim como fizeram com seu nome, seu ato também foi vulgarizado. Não era mais nenhuma menina, o balançar de seus cachos já não era visto com inocência e não havia quem tivesse teto seguro para suportar o caminhar da filha do vento. A leveza da vida que queria levar era um fardo pesado demais. O que não se entende.
Um dia amanheceu como qualquer outro. Ela não. Amanheceu caída no chão. O sangue explodia do peito e se consumiu com a mesma intensidade com que pulsava lá dentro. Não queria e nem podia circular por outro caminho. O vento parou de soprar por um minuto. A TV queria mais sangue e montou o circo das banalizações. Quem matou não importava. Importava era o que falavam, o que diziam, o que sabiam e o que não sabiam. No minuto seguinte, desistiu da trégua; o vento soprava com o furor da juventude interrompida. Não havia quem se atrevesse a tocar na filha, a tirar-lhe a liberdade de simplesmente estar ali. O vento a soprou para longe, em conversa com o Ganges, que acolheu a menina. Todos os rios levaram-na até lá. O vento ofereceu sua filha às águas, em favor do ciclo que não pode ajudar a cumprir.

3 comentários:

UtópicA disse...

Que triste e lindo.

Leo Mandoki, Jr. disse...

vc escreve mto bem!! mas tem uma técnica perversa para o leitor...vc fica blindada na perfeição da sua escrita, ou seja, vc esgrime a escrita para se blindar nela...
não entendi seu comentário: DESISTO????!!!
desiste de que?
beijossss

Dani Pedroza disse...

Li seu post e a idéia que me veio à cabeça foi de chuva, o ciclo da água, um eterno cair e ganhar os céus de novo. Nem trágico, nem feliz. Inevitável. Natural. É isso, natural. Gostei. Muito.