Em 2008 conheci um cara, daqueles bem resistentes, remanescente da cultura hippie. Ele mora no meio duma clareira em São Tomé das Letras. Vive do camping e do artesanato. Sei que ainda vive, porque recentemente liguei no celular dele. Iria me "hospedar" no seu "estabelecimento". Um hippie moderno, com celular.
Pregava aos quatro ventos que ninguém é de ninguém. Falava com ar paternal, que tinha muita pena de nós, pobres jovens paulistas, que engolimos fumaça e crescemos com o asfalto, concreto e a selvageria de gravata. Eu também tenho dó de nós por causa disso.
Antes de aderir a vida paz-e-amor, era químico da Rhodia, ganhava muitas cifras por mês. Um belo dia, cansado da vida vazia que consistia em apenas ganhar dinheiro, foi para o meio do mato com sua esposa. Lá planejou com a ajuda do estudo do alinhamento dos planetas, qual o melhor momento para parir um filho. Decidiram que seria de escorpião. Um menino.
Mas como na vida de verdade não há final feliz , num dia não tão belo a vida bicho grilo perdeu a graça e a mulher cansou de brincar de espírito da floresta e voou para Europa. Lá onde as luzes são diferentes e a grama parece ser mais bonita que a nossa...
Essa história ele só contava quando a cachaça já dominava o corpo, a mente e o coração. Principalmente o coração. A cachaça não era para anestesiar, era para liberar as mágoas.
Ele queria construir ali uma comunidade onde todo mundo ajudava todo mundo e ninguém era de ninguém. Um moço que estava lá hospedado conosco, casado, achava tudo aquilo muito belo, todo o discurso fazia muito sentido. Até que sua mulher virou alvo dos galanteios do hippie da Rhodia.
Na verdade o termo certo é "até que ele percebeu que a mulher era o alvo dos galanteios". Aquilo vinha acontecendo desde que chegamos lá. Eu estava ali, percebendo tudo a distância, porque por motivos que não interessam aqui, meu olhar era mais de observação. E não confiava naquele discurso nem fodendo.
Já fazia algum tempo que eu era bombardeada constantemente pela filosofia do desapego. Mas hoje só algumas coisas servem para mim. Qualquer exagero é sinal de alerta para alguma coisa bem mal resolvida. Inclusive a insistência no desapego. Porque ao mesmo tempo que me pregavam isso, eu era diariamente convidada a estar junto e estar junto e estar junto. No meio da história, quando cansei, fui convidada a continuar porque sim, porque valia a pena. No final, quando me adaptei e sabia o que era bom e o que era ruim para mim, era só silêncio e o "não tínhamos garantia de nada". Era só o porque não e o machismo enrustido.
No final , o amor livre tão bonito, não serviu de nada. Porque tem o machismo e o sentimento ingênuo de propriedade até no aspirante a marxista mais fervoroso. Não tem filosofia que dê conta de ir contra isso. Qualquer combate contra as coisas ditas do coração, soa falso quando a gente sabe que um simples gole de cachaça ou uma ligação no meio de um dia parado coloca para fora o que está latejando...embarga a voz, deixa o telefone mudo.
Cada encontro faz brotar uma relação diferente; não adianta pregar ao coração alheio conceitos alternativos ou tradicionais de convivência. Ninguém sobrevive a imposições, nem as que são maquiadas de contra-cultura.
Desconfio de todo ex-alcoolatra-cheirador-ladrão-pedófilo que virou crente fervoroso de alguma coisa. Trocou uma droga pela outra.
Muitas vezes fugir para o meio do mato é só mudar o problema e o exagero de lugar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário